Carta de lançamento da Rede

Esta carta lançou a ideia e 3000 cientistas brasileiras assinaram iniciando esse movimento. Se você também quer contribuir, faça parte da nossa rede.


Rede Brasileira de Mulheres Cientistas

Em defesa da vida das mulheres na pandemia

No momento em que publicamos esta Carta, 360 mil brasileiros/as morreram em razão da pandemia de Covid-19. Como é de conhecimento da comunidade nacional e internacional, parte significativa dessas mortes foi provocada pela decisão do Governo Federal de afrontar a ciência e desprezar a vida da população brasileira, colocando em risco aqueles que tinha por dever proteger. O agravamento das condições sociais, econômicas e psíquicas decorrentes da ausência de políticas públicas adequadas para a contenção da doença tem esgarçado o tecido social e lançado milhares de brasileiros e brasileiras à própria sorte.

A situação atinge de forma mais dramática as populações vulneráveis, em especial as mulheres. Sobre elas recai o trabalho do cuidado em relação às crianças, idosos e enfermos, muitas vezes na condição de chefes de família. Muitas delas tiveram que abandonar seus empregos para se dedicarem exclusivamente às suas famílias, enquanto outras viram se agravar a precarização que acompanha, na maioria dos casos, sua inserção no mercado de trabalho. Além disso, tem sido abundantemente noticiado o agravamento dos casos de violência doméstica e política contra as mulheres.

As mulheres pobres, negras e moradoras de periferias são ainda mais fortemente afetadas pela pandemia, seja em função da própria crise sanitária, seja em decorrência da crise econômica, da suspensão das aulas nas escolas, da intensificação da violência doméstica, da restrição ao acesso a tratamentos de saúde ou a medidas relacionadas à saúde reprodutiva. Isso tudo somado ao racismo, à misoginia e ao sexismo, sempre presentes em suas vidas. Além disso, sabemos que de cada 10 grávidas ou puérperas que morrem em virtude da COVID-19 no mundo, 8 são do Brasil. Este fato denota uma situação de completa vulnerabilidade das mulheres diante de uma pandemia sem controle no país.

É preciso lembrar que a taxa de desemprego do último trimestre de 2020 foi de 14,4%, subindo para 17% entre as mulheres. A taxa de participação destas na força de trabalho remunerada caiu para 46,3%, a menor em 30 anos. Como em outras partes do mundo, a vulnerabilidade tem rosto de mulher. Isso compromete a autonomia e integridade dessas mulheres, mas também as de crianças, adolescentes e idosos, já que quase metade dos lares brasileiros são por elas sustentados. A desigualdade é ainda mais perversa no caso de mulheres negras e pobres, marcadores sociais de diferença que interseccionados revelam um grupo ainda mais vulnerável.

A maior parte do trabalho de cuidado, como mostram diversas pesquisas científicas, é realizada por mulheres. Considerando-se que todas as pessoas precisam de cuidado, e isso é ampliado em tempos de pandemia, a divisão sexual do cuidado afeta agudamente a vida das mulheres, que são sobrecarregadas no âmbito do cuidado de familiares e, em média, também sub-remuneradas no mercado de trabalho. É fundamental ressaltar que a maior parte do conjunto de profissionais de saúde são mulheres, assim como nas ocupações profissionais mais precarizadas de reprodução da vida cotidiana.

Essa situação dramática tem mobilizado um conjunto diverso de atores na sociedade e na academia, que buscam responder, a partir dos diferentes recursos que dispõem, às urgências impostas pelo momento.
Nos unimos, portanto, nesse esforço conjunto em defesa da vida e bem-estar das mulheres.

Somos cientistas, ainda sub-representadas nas universidades e nas instituições de pesquisa brasileiras, segundo dados do CNPq, e, neste momento tão dramático, que afeta inclusive as nossas produções científicas, buscamos atuar em defesa das mulheres a partir de uma perspectiva que busca a atenção a algo praticamente ignorado no debate público: a condição das mulheres brasileiras na pandemia.
Há uma ausência completa de políticas públicas voltadas a apoiar as mulheres e meninas neste momento de crise humanitária.

É preciso exigir que o Estado brasileiro cumpra seu papel. E é preciso que cumpra seu papel a partir de uma perspectiva de gênero, sem o que se torna difícil diagnosticar e construir alternativas capazes de produzir garantias integrais para a vida das mulheres, evitando que o futuro próximo seja de agravamento ainda maior das desigualdades de gênero no país.

Há o que ser feito. É possível, aqui e agora, e com os recursos públicos existentes, implementar políticas públicas que garantam condições de vida, trabalho e segurança para as brasileiras.

A partir do que temos acumulado ao longo de uma vida dedicada à ciência, em diferentes áreas do conhecimento, consideramos estratégica a implementação de políticas dirigidas às mulheres em torno de seis grandes temas:

– Saúde
– Violência
– Educação
– Assistência social e Segurança alimentar
– Trabalho e emprego
– Moradia e Mobilidade

As propostas para essas políticas já estão prontas. Há muito acúmulo de conhecimento, produção altamente qualificada e experiências em torno desses seis temas. O que queremos com nossa articulação é levar essas respostas para o centro do debate público, buscando uma abordagem integrada em torno das necessidades cotidianas das mulheres.

Para alcançar esse objetivo, buscaremos:

1) Atuar junto a gestores públicos, em diferentes níveis da federação, oferecendo conhecimento técnico, sob a forma de cartilhas e protocolos, para ampliar a capacidade de resposta dos órgãos públicos. Sabemos que, principalmente em municípios menores, há uma enorme carência de conhecimento especializado
nessas 6 áreas relacionadas à vida das mulheres. Embora muitas vezes o recurso até exista, nem sempre o corpo técnico dispõe de soluções estruturadas para a aplicação eficiente do recurso. Queremos propiciar acesso ágil a essas soluções.

2) Buscar formas de ampliar esse debate na esfera pública, envolvendo jornalistas, associações de mulheres do Judiciário e do Ministério Público, movimentos feministas etc., para que esse debate seja uma busca coletiva de construção de soluções. O silêncio sobre os efeitos da pandemia em relação às vidas das mulheres e meninas brasileiras agrava o quadro sanitário e econômico e por isso propomos uma campanha nacional de comunicação de risco durante a emergência, até hoje jamais realizada no Brasil, com ênfase em questões de gênero.

3) Ampliar o diálogo com as autoridades eleitas e investidas do poder de decisão de forma a sensibilizá-las para a urgência de garantir as condições básicas de vida nesse contexto de crise humanitária. Considerando não apenas a extensão temporal da atual pandemia, como as evidências científicas, amplamente reconhecidas pela comunidade internacional, de que novas pandemias estão a caminho, faz-se necessário fomentar e assessorar a apresentação de projetos de lei que instituam, em todos os níveis federativos, a indissociabilidade permanente entre a adoção de medidas quarentenárias e a implementação de medidas proporcionais de proteção social, a exemplo do auxílio emergencial e de outros benefícios materiais e de renda, e de programas de proteção a pequenas e médias empresas.

4) Sistematizar e difundir experiências exitosas de resposta à pandemia, sobretudo as periféricas, tanto de auto-organização de comunidades (por exemplo, Paraisópolis, Complexo do Alemão etc.) como de governos locais (por exemplo, Niterói, Araraquara etc.), com ênfase na participação de mulheres nesses processos. Para isso, propomos, além da sistematização, rodas de conversas e soluções dialogadas entre cientistas e ativistas.

5) Fomentar e assessorar iniciativas no campo da memória, da verdade e da justiça, com foco no impacto da pandemia na vida das mulheres, inclusive plataformas públicas com depoimentos de vítimas e familiares das vítimas da Covid-19, além de profissionais dos serviços considerados essenciais, como as da área de saúde, ou de serviços não essenciais que não foram dispensados(as) de seus trabalhos; apoio a iniciativas de investigação da sociedade civil e a iniciativas institucionais de responsabilização dos agentes públicos e privados responsáveis pela propagação da Covid-19 no Brasil.

Junte-se a nós nestas pautas, em defesa da vida das mulheres na pandemia!

Conheça as cientistas brasileiras que assinaram essa carta.

Identidade Visual: Profa. Dra. Rafaella Lopes Pereira Peres (UFMS)

Construção do site: Mariana Miranda Tavares